sábado, 20 de janeiro de 2024

Dia anoitecendo, eu largando uma corrida no fundo apocalíptico da Restinga Velha, prédios em ruínas, esqueletos de carros esquecidos nas ruas, um funk tocando ao longe. A corrida até lá já foi tensa, com o passageiro dormindo a viagem toda no banco traseiro, a dúvida se ele teria dinheiro pra me pagar no final, mas eu estava aliviado: o homem, gente boa, reciclador, puxador de samba no carnaval, estava acertando a corrida e jogando conversa fora. 

Foi quando apareceu o homem.

Enquanto meu passageiro se despedia, se ajeitava pra desembarcar, eu de olho no homem ao lado do táxi. Ele esperava desocupar, precisava uma corrida, com certeza, fazia-me sinais de positivo em movimentos rápidos, sem fixar o olhar nos meus olhos, suando muito, como se tivesse chegado ali correndo, o dia quente, mas já anoitecendo, sem motivo pra tanto suor, o cara mal apessoado, mal vestido, um boné torto, uma mochila encardida pendurada em um dos ombros, parecendo ansioso (drogado?), eu já pensando num desdobre qualquer pra não deixá-lo embarcar no meu táxi. O passageiro puxador de samba desceu e o homem me abordou. Segurou a porta, não deixou fechar, precisava de táxi. Tenso, suando, me pediu que aceitasse fazer sua corrida.

– Pelamor, pae, me leva, ae, tô vindo lá do Barro Vermelho, ninguém quer me levar, pae, me leva ae, preciso ir lá atrás do Presídio Central, pegar umas roupas pra minha mãe que tá internada com covid, é jogo rápido, pae, tranquilão, pago o senhor no dinheiro, ninguém quer me levar, sou honesto, pae, me leva ae, te dou 50 no dinheiro...

Pô, cinquenta conto, eu precisando mesmo voltar pro Partenon, o cara me abrindo o jogo, achei que valia a pena o risco. Mesmo com uma enorme quantidade de pulgas atrás da orelha, resolvi aceitar a missão. Bora ver qualé.

A corrida foi sem sobressaltos, o cara quietão, mochila no assoalho, entre os pés. Confirmou a história da mãe no hospital e não quis mais conversa. Só o barulho dos pneus no asfalto, a noite caindo e a sensação de que eu seria assaltado aumentando. Desliguei o ar e abri os vidros, na esperança que a brisa da noite segurasse a dor de cabeça que crescia na minha nuca e subia em direção aos olhos. 

Corta por dentro da Glória, pega a Intendente, bairro Aparício Borges, aquele labirinto atrás do Presídio, entra aqui, dobra ali, sobe a Menina Elvira, sobe mais um pouco, noite nublada, abafada, sem lua, ruelas mal iluminadas. O cara firme, a mochila entre os pés, eu controlando com o canto do olho, só esperando o anúncio do assalto, até que chegamos. 

– Para por aqui, pae, na saída do beco, vou ali pegar o dinheiro, só um minutinho, jogo rapidão.

Ele abriu a porta traseira, pôs um dos pés pra fora do táxi, quando fez o jeito de desembarcar eu segurei a mochila - depois que entrasse naquele beco, nunca mais que eu acharia o maluco. Se ele estava pensando em fugir, seria sem a mochila. A mochila fica, brother.

— A mochila, pae, preciso da mochila.
— A mochila fica comigo, eu espero tu voltar com a grana, não te preocupa, magrão.
— Péra, tio, tenho que pegar o ferro, na mochila.
— Ferro? Que ferro, meu, tá louco?
— Sereno, pae, pode ficar com a mochila, só vou pegar o ferro, pra buscar o dinheiro, sereno, péra.

O cara abriu a mochila e puxou um revólver! Agarrando pelo tambor, com a mão toda, um enorme trezoitão cromado, um tremendo dum ferro! Caralho! Mó taquicardia, eu em pânico e o maluco me tranquilizando. Suave, suave, vou ali e já volto. Eu segurando a mochila e o cara desembarcando, nem sinal de me assaltar, só saindo, numa boa, pedindo pra esperar um minuto, tinha umas contas pra acertar, voltaria com meu dinheiro e desceu, emburacou na viela escura!

Eu só aguardando os tiros. Já tarde da noite, sem viva alma na rua. Eu com a mochila, a porta do táxi ainda aberta, meio sem saber o que fazer. Que merda! E agora! Tô nesse impasse, por uma fração de tempo que não sei precisar, a cabeça girando, cinco minutos, meia hora, sei lá, quando o cara surge de volta. Passa pela frente do táxi, a arma agora segura às ganhas, mas voltada pro chão. Passou por mim, pediu que eu fosse manobrando o carro, disse que ia chamar o "patrão", só um minuto, levaria o patrão junto, rapidão. Nem um minuto depois, passou de novo em direção ao beco. Agora acompanhado do que parecia ser o patrão... Uma mulher! Gorda, peitões, chinelos, camiseta do Grêmio de umas 10 temporadas atrás: A patroa do tráfico!

Dei um jeito de manobrar o táxi na viela estreita, íngreme, os barrancos ameaçando despencar, meu reino por um sensor de estacionamento. Estou apontando o táxi morro abaixo quando surge de volta o magrão. Dinheiro na mão! Uma nota de 50 balançando em minha direção! Feito!

Agradeceu, sincero, acreditei nele, me apertou a mão, jurou que taxista não sofre pênalti naquela quebrada. É nóis! Despediu-se, a arma apontada pra baixo, já ia largando fora, tive que lembrá-lo da mochila! Podecrê, pae, tudo firmeza, suave, tranquilão...

A noite pesada de umidade, a cidade lá embaixo vibrando como uma miragem no calor, as luzes do Presídio Central. Dei partida e empreendi a descida na lenta, virando roda, o táxi subitamente mais leve, macio, aquela sensação boa de estar voltando aos poucos à minha realidade. Por pior que ela pareça.

sábado, 13 de janeiro de 2024

- O Sr é o Júlio?
- Sou o Mauro.
- É que eu estou aqui esperando... O Júlio...
- Tudo bem.
- Eu chamei pelo aplicativo, o Sr é aplicativo?
- Sou taxista, só parei aqui pra escrever uma mensagem, dá licença.
- É que o carro que eu chamei... Acho que está perdido, sabe?
- Amigo, eu estou tentando escrever uma mensagem aqui.
- O aplicativo marcava 3 minutos, agora 7 minutos, acho que o tal de Júlio está perdido.
- Sei.
- Desculpe lhe atrapalhar, seu táxi está livre?
- Só um minuto, estou terminando de escrever.
- Onze minutos, agora, o aplicativo se perdeu.
- O Júlio?
- É que eu estou atrasado, sabe?
- Pronto, terminei aqui. O Sr deseja algo?
- Ir para a rodoviária, tenho horário, o aplicativo... Tá perdido...
- O Júlio?
- Eu cancelo o Júlio, o Sr me leva?
- É isso o que eu faço, transporto as pessoas.
- O Sr faz pelo preço do aplicativo?
- Quanto estão lhe cobrando pelo aplicativo?
- R$18.
Levei o cidadão até a rodoviária. Cobrei os dezoito. Pelo taxímetro não daria quinze.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Quando a vi aproximando-se do meu táxi, pensei, preconceituoso, que me pediria dinheiro. Não. Perguntou quanto custaria uma corrida até o alto do morro Santa Teresa. Dei o valor, ela arredondou pra cima. Beleza. Explicou que, no mês passado, foi assaltada na subida do morro, levaram toda a sua aposentadoria. Passou o natal com dificuldades. Estava pagando o táxi por segurança.

Enquanto subíamos, descobriu o meu livro no expositor. Expliquei que eu era o autor. Ficou maravilhada. Disse que adorava ler. Se eu fizesse um desconto, compraria. Levou de graça. Brinde da casa!

No alto do morro, ponderou que eu poderia deixá-la na entrada da vila. Não precisava descer. Sabia que os taxistas não costumam entrar. Imagina, faço questão. Fui até a boca da sua viela, a poucos metros de casa. Cem por cento segura. Pedi uma foto. Dona Cleusa, generosa, aceitou posar com o livro. 

Mais uma leitora conquistada.

sábado, 30 de setembro de 2023

Parei no número 271 da rua Ala. Vila Bom Jesus. Meu cliente solicitou nesse endereço, mas ele não deve morar ali. Tô ligado. É a ponta de um beco. Meu passageiro deve morar lá pra dentro, onde não entra carro. Por isso o 271 bem grande escrito a mão na parede do barraco. Aguardo.

Chuva fina e ventania. A manhã ainda não clareou. Surge no fundo do beco um casal bem jovem. Ela vestindo um chambre apeluciado e uma toalha na cabeça. Ele de bermudas, chinelo e uma ponta de cigarro "artesanal" na boca. Trazem com eles 4 crianças. Quatro. Meus clientes. Valei-me Deus.

O rapaz embarca com a criançada — o cigarro de maconha já apagado, só o retrocheiro no ar. A mulher fica. Meu passageiro deixa uma criança menor numa creche pública. Mais adiante, deixa os outros 3 filhos num colégio público. Criançada tossindo, nariz escorrendo, o clima gaúcho é cruel. Despachada a piazada, tocamos pro Menino Deus.

Já com o baseado mocozado no bolso, meu cliente relaxa. Queixa-se da vida. Está cansado. Conta que trabalha na construção civil, é gesseiro, fala com orgulho da profissão. Diz que é fim de mês, hoje vai receber e vai direto pro supermercado, encher as latinhas do barraco, comprar fraldas, que a chuva não dá trégua e não tem roupa que chegue pra vestir os bacuris. Bah. 

No fim da corrida, ainda deixou uma gorja e um sorriso largo. Vai matar o cigarrinho com os colegas no canto da obra antes de subir pros andaimes. Típico trabalhador brasileiro. Tem meu respeito.

Quanto a mim, é baixar a cabeça, trabalhar e parar de reclamar da goteira que apareceu lá em casa com a chuvarada. Eita setembro que não vai deixar saudade.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

 Largando uma senhorinha no fundo da Maria Degolada, desci o que pude na vila, pra ela não se molhar muito. Um dilúvio desabando, o dia virou noite, um horror. A tiazinha pagou a corrida e sumiu na escuridão da quebrada. Eu manobrando o táxi, só pensando em sair dali, a chuvarada transbordando os arroios, os postes tortos ameaçando cair com o vento, granizo, zona de alta periculosidade... Foi quando surgiu de um beco um magrão fazendo sinal pra mim. Meio encolhido, protegendo-se da chuva guasqueada, do vento, um magrão volumoso, esquisito, mal iluminado pelos faróis do táxi. Impossível vizualizar direito. Eu ainda meio trancado na ruela da Degolada, não podendo nem acelerar pra fazer de conta que não vi o boneco. Bah, vou ser assaltado, alguma coisa me disse. Ferrou. O magrão mal vestido, bermuda, um pinto de molhado... Destravei a porta. Fazer o que. Assaltado, certo.

Ele embarcou se espanejando, desculpando-se por molhar todo o táxi. Tudo bem. Pediu que o levasse até a Bonja, vila Bom Jesus. Eita, outra zona complicada, ferrou. Juro que fiz as contas dos assaltados. Pelas minhas contas, já mais de 5 anos do último atraque. Nenhum taxista sobrevive tanto tempo sem perder pros vagabundos. Ferrou.
Vamo lá. Limpador de parabrisa no máximo, dobra aqui, cuida os alagamentos, cruza com cuidado. O magrão meio quieto, dei um jeito de puxar assunto. E essa chuva, hein? Aproveitei pra filmar o maluco pelo retrovisor. Se ele vai me assaltar, quero ver bem o 3x4 do cara. Foi aí que eu vi os brincos. Dois brincos. Um em cada orelha! Rapaz, foi nesse exato momento que eu percebi que estava tudo bem. Meu espírito se desarmou. Um cara que usa brinco, dois brincos, é um cara do bem. Tem que ser. E não deu outra.
Engatamos uma conversa. O magrão é colorado doente. Fechou. Torcida organizada. Disse que a irmã dele joga no time feminino do Inter. A guria é promessa. Vai estourar nos profissionais. O cara é encarregado de estoque em um grande supermercado, super gente-boa, descontraiu geral o ambiente no táxi. Até a chuva amainou. Bah, e eu pensando mal do magrão. Tri preconceituoso, é foda. Só porque o cara é pobre, só porque tá na perifa. Preconceito.
Baixamos na Bonja, pros lado do mato Sampaio, desce aqui, entra ali. Tudo meio alagado. Pode descer, não dá nada. Bequinho apertado. Tem espaço pra manobrar lá no fundo? Aqui mora minha irmã, a que joga bola. Ah, tá. Desce mais embaixo. Bah, não tem saída. Só mais um pouco, a chuva recomeçando, o táxi meio que atolando. Tá bom aqui. O magrão foi curto e grosso:
— Não quero nem o teu dinheiro, motora. Fica com esse troco de merd∆ pra continuar trabalhando. Passa só esse teu celular bacana, aí. Preciso dele pra pagar umas dividas. Vou descer, entrar naquele beco e tu vai vazar. De ré. Mas VAZA! Não olha pra trás. Some daqui se não eu te furo, taxista filho da put∆!
Depois de 5 anos, perdi. Recomeçando a contagem. Estamos trabalhando a zero dias sem assaltado.

sábado, 29 de julho de 2023

Quando subo o Morro Santa Teresa, costumo parar no pontinho que tem na esquina da rua Rádio e Tv Gaúcha. A clientela ali é a seguinte. Da direita vem o pessoal que está saindo da RBS TV (já peguei o Fito Páez saindo dali!). Da esquerda vem o pessoal que sai da Vila Buraco Quente — por vezes, uma galera de reputação duvidosa. Bom, nem tudo são Mariposas Tecnicolors. Parei ali.

Veio um maluco da esquerda, respingou da quebrada, calça arreada, moleton meio encardido. Chegou na porta do táxi perguntando se eu o levaria até o Centro da cidade (passageiro normal não pergunta, abre a porta, senta e deu). O cara tinha uma cicatriz que lhe cortava o rosto de cima abaixo cruzando sobre o olho esquerdo. Vixe. Vamo lá, mano. Até prova em contrário, o cara é só alguém precisando de um táxi.

Destino: Voluntários da Pátria, altura do Camelódromo. O olho do furacão. O magrão confessou que era peão de obra, que tava saindo com o salário da semana pra meter o Loko. Pegou uma "substância" na Vila, pra levar pra uma garota que faz programas no Centro, que atende ele, digamos, mais a fundo quando embalada por um bagulho. Se é que me entendem.

Pagamento em espécie, arredondou pra cima, tudo certo, tamo junto, quem sou eu pra julgar. Divirta-se, é sexta-feira, a vida é curta e o dinheiro foi feito pra gastar. Taxímetro no livre, vamo pra próxima.

sábado, 8 de julho de 2023

Sabe aquele idoso classudo, bem vestido, chapéu de feltro, óculos casco de tartaruga, valise de couro. Dava gosto de ver. Sentou no banco traseiro do meu táxi, feito um lorde. Destino: Teatro São Pedro. Cruzou as pernas e abriu um jornal. Um jornal, cara! Jornal de papel! É muita chinfra, deu vontade de fazer uma foto até. Cá comigo eu pensei: taí um tiozinho que compraria um livro.

No primeiro semáforo, chamei a atenção para o expositor a sua frente que continha 2 exemplares do TAXITRAMAS. Ele baixou o jornal, mirou a capa por alguns segundos e me parabenizou. Beleza. Sinal verde, vambora. Silêncio pelo resto da corrida. Só quando chegamos, percebi que meu cliente havia trocado o jornal pelo meu livro. Leu por toda a corrida. 

— Muito bom. O senhor escreve bem. Texto fluido, certeiro, digno dos melhores cronistas.
— Opa, obrigado!

Meu passageiro perguntou o valor da corrida, arredondou pra cima e mandou descontar mais dois exemplar do meu livro. Autógrafo para ele e para uma amiga. Disse que trabalhou a vida toda com as letras. Foi "titular" de literatura por muitos anos na UFRGS, depois lecionou língua portuguesa em uma universidade na França, voltou ao Brasil e fundou o curso de letras na universidade de Caxias do Sul. Bah. Taí um leitor de respeito. Ele garantiu que me daria notícias. Conferiu meus contatos na folha de rosto do livro e se foi com seu ar aristocrático. Pontual para o chá da 5 no Foyer Nobre do Theatro São Pedro.

Pensando que preciso providenciar uma edição com capa dura e menos palavrões.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Senhorinha bem idosa embarca pela porta da frente e pede que eu lhe ajude com o cinto de segurança.

— O senhor conduza o auto com cuidado, por favor, vá devagar que estou em estado interessante.
— Interessante?
— Sim, taxista, estou de 9 meses, praticamente. O senhor não vai querer que a criança nasça no seu táxi, não é?
— A senhora está grávida?
— O senhor nem imagina, foi um acidente, um caso rápido, com um jogador de futebol, casado, ainda por cima. Minha família não aceita! 
— Um jogador de futebol, não diga?
— Pois é, o Botafogo veio jogar na Baixada, acabei conhecendo o Heleno, saímos, matinê no Cine Capitólio, chá na Confeitaria Rocco, um turbilhão de paixão, acabei sucumbindo ao charme do homem... Aconteceu, fazer o quê?
— A senhora...
— Senhorita.
— Desculpe. A senhorita teve um Caso com o jogador Heleno de Freitas?

Nesse ponto chegamos ao endereço que ela tinha indicado (um residencial geriátrico). Desliguei o táxi para ouvir o resto da história.

— Que homem, que elegância, a Gomalina no cabelo, a altivez em campo, eu, uma moça ingênua, impulsiva, o senhor sabe como é...
— Agora a senhora está grávida.
— Estou morando nesta pensão, meu pai me expulsou de casa, mas estou no curso de Corte e Costura, vou trabalhar, dar um jeito de criar essa criança que não tem culpa de nada.
— E o Heleno?
— O senhor não leu o Correio do Povo de ontem? Ele foi vendido, vai jogar na Argentina, o canalha, por certo nem lembra que eu existo, que me fez mal.
— Mas a senhora, digo, senhorita ainda pensa nele.
— Sou uma tola apaixonada, taxista.
— Entendo.

Uma das enfermeiras da geriatria veio ajudar a idosa a desembarcar. Repreendeu-a por ter escapado de novo, por ter saído sozinha. Ela não deu bola, foi-se com seu passinho curto, segurando a barriga, como se o passado lhe pesasse no ventre.

domingo, 25 de junho de 2023

 Seu Rosauro não me segue no Face, nem no Insta, nem no site, o negócio dele (louvemos!) é presencial. Me viu num ponto, lá no Centro, bateu no vidro do táxi, perguntou se eu não era o taxista que escrevia no jornal — bah, década passada. Eu mesmo! Trocamos uma ideia, celebramos o encontro, a magia da escrita resistiu ao tempo, nos reconectou.

A vida é o que acontece enquanto você admira essa selfie.

domingo, 18 de junho de 2023

Sabe aquela passageira que embarca no teu táxi, você apresenta seu livro e ela diz "pena que não tenho dinheiro"? Mas você alcança o livro mesmo assim, ela dá uma folhada, uma risada aqui e ali, a corrida passando, ela lendo, "uau, isso aconteceu mesmo?", outra risada... Então você, ao volante do táxi, ouve o barulho do zíper da bolsa abrindo ziiipe. Uns breves segundos depois, o comentário:

— tenho dinheiro suficiente. Vou levar o livro.

Você não sabe. Não é taxista nem vende livros. Mas eu posso afirmar. Aconteceu há pouco.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Manhã de chuva forte, Dilúvio transbordando, trânsito nervoso, sangue nos olhos dos motoristas, urgência, aspereza. "Nosso lado animal, vez em quando, precisa tomar sol".

Pelo meu táxi já passou um músico, um militar, uma maquiadora e um engenheiro português - a diversidade em movimento. Tentando se manter alheio ao caos.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Dedo

— E agora, mãe, sem internet, como vamos conseguir transporte?
— Usando o dedo.
— Dedo? É tipo um app?
— Veja, meu filho, a gente levanta o dedo assim e um táxi pára.
— Táxi??
— Olha aí, parou, isto é um táxi.
— Uau! Como é que isso funciona?
— O dedo levantado aciona uma espécie de rede, gera um algoritmo, digamos assim, e a cidade passa a lhe enviar táxis.
— Táxi! Maneiro! O que é aquilo em cima do painel?
— É um taxímetro, meu filho, um taxímetro.
— E onde a gente digita o destino?
— Basta falar para o taxista, ele conhece a cidade.
— Ele tem tipo um Google Maps na cabeça?
— Taxista, nos leve até a biblioteca pública.
— Biblioteca, mãe? O que é biblioteca?
— Um lugar onde você vai fazer o seu trabalho escolar sem internet.
— Jura?? Sem internet! Que da hora!!

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Em frente a uma loja de materiais de construção, um casal faz sinal pro meu táxi. Paro. A mulher tem uma nota fiscal na mão. Ela chega na janela:

— O senhor faz uma corridinha até a Vila Cruzeiro?
— Claro.
— O senhor pode encostar de ré ali no depósito.
— Depósito?
— Sim, temos que levar um 'materialzinho'.
— O que seria, senhora?
— Dois sacos de cimento, vinte quilos de areia grossa, seis metros de lajota e outras miudezas. Tem uma escada 10 degraus, mas a gente leva ela pelo lado de fora do táxi, eu e meu marido vamos segurando... O senhor passa cartão, né?
— Bah, lamento, minha maquininha pifou.

domingo, 4 de junho de 2023

A noiva

Ipiranga, com João Pessoa, sentido bairro/centro, vou chegando no sinal fechado e noto a noiva. Uma noiva, ela está sentada no meio-fio! As pernas na via, sobre o asfalto. As pernas abertas, os cotovelos pousados nos joelhos e a cabeça baixa. Vou parando o táxi, na faixa central da Ipiranga, reparando melhor na figura extraordinária. Uma noiva, não há dúvidas. Ela está com alguma coisa na mão, um negócio branco, meio rígido, algo como... Aquelas golas que os padres usam. Poderia jurar que é uma gola de padre! 

É domingo, cedo da manhã, meio de feriado de carnaval. A avenida vazia. Só eu e a noiva naquela esquina. Penso que poderia ser uma fantasia, uma foliona de ressaca, mas não. Está ali uma noiva autêntica, sou capaz de apostar. A maquiagem borrada foi feita com esmero, delicada, o vestido caro, por certo, apesar de sujo agora, é um vestido preparado para uma cerimônia de casamento. A cabeça baixa ostenta o que sobrou de uma tiara de flores delicadas. Uma noiva.

Ela parece perceber que há um carro parado no sinal,que está sendo observada, ergue a cabeça, os olhos borrados de rímel. A noiva me faz um sinal com a mão que está livre — ela me pergunta com um gesto, aquele típico gesto de quem leva e traz um cigarro à boca. A noiva me pergunta se tenho um cigarro! Meu Deus, como eu queria ter um cigarro, uma carteira inteira de cigarros para alcançar àquela mulher. Aproveitar a intimidade de quem troca algumas tragadas para saber o que a trouxe até aquela esquina, o que a deixou naquele estado. Mas tudo o que eu tenho no porta-luvas do táxi é uma banana, uma maldita banana para comer no meio da manhã. Não ouso oferecer. Penso em perguntar se precisa de transporte (poderia levá-la de graça aonde fosse em troca da sua história!). Ela percebe que não tenho o cigarro e volta a baixar a cabeça. Volta a prescutar o chão com a gola do padre, a brincar com algum tipo de formiga, no asfalto.

O sinal abre. Verde. É manhã de domingo, o feriadão esvaziou a cidade, eu poderia ficar ali por mais dois ou três ciclos do semáforo, mas sinto que devo partir. Não tenho nada a ver com a triste condição daquela noiva, nem um cigarro para lhe oferecer eu tenho. Melhor seguir em frente. Pelo retrovisor ainda observo a figura exótica, cotovelos nos joelhos, pernas abertas, o vestido magnífico brilhando ao sol da manhã, a cabeça baixa, o rosto enfiado no chão, catando formigas com a gola de um padre como se o mundo não existisse. Sigo pela avenida deserta na manhã de domingo. Hei de encontrar alguém que precise de táxi, afinal, é pra isso que saio de casa todos os dias.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Finalera do dia, eu já louco pra pegar alguma corrida pro lado de casa, o trânsito enlouquecendo, chega uma passageira no Ponto. Ela pergunta quanto cobro para levá-la até a Restinga. Eita! Longe pra dedéu! O taxímetro que manda, amiga, mas ela queria uma estimativa. Preço fechado. Bom... Digamos 50 pilas, pra senhora (um bebê de colo, mais duas crianças pela mão). Bah, a mulher enlouqueceu:

— Tá loko! Bem capaz! Por isso que vcs tão aí parado, o Uber leva por R$25, porque eu já fui várias vezes, vinte e oito no máximo, que isso!! biriri, biriri...

Eu encostado no táxi estava, encostado no táxi fiquei. Ela saiu com as crianças pela mão, digitando furiosamente o celular, chamando Uber, 99, indrive e o escambau. Eu pensei: Ótimo, vai economizar uma grana indo de aplicativo.

Enquanto a mulher esperneava no smartphone, ia perguntando aos colegas, na fila de táxis, quanto cobrariam pela corrida até a Restinga. Até que, por fim, parece ter encontrado um app barato. Ficou esperando ao lado dos táxis. Gloriosa. Mandando um olhar de desprezo pra fila de taquinhos. Em seguida, apontou um Prisma modelo século passado, o para-choque desbeiçado, a lataria torta. A mulher levantou o celular, mostrando que era ela a passageira. O carro, então, acelerou e se foi. Cancelou.

A mulher voltou até meu táxi. Pediu desconto. Expliquei que a corrida, pelo taxímetro, ficaria além dos sessenta. Ela concordou, sabia o valor. As crianças cansadas, ela cansada, os aplicativos cobrando na casa dos 3 dígitos, moto-taxi não dava, ônibus lotados.... Fechamos nos 50 pilas.

Notando o Spotify, a mulher perguntou se poderia escolher um som. Só pedir. Seleção Raça Negra na veia! Eu tinha comprado dois mandolates na sinaleira. Dei pros moleques que pareciam com fome. O bebê de colo pegou uma teta e vamo que vamo. Logo a criançada ferrou no sono, até a mãe dormitando. 

Fomos além da Restinga, muito além, quase Lomba do Pinheiro, Minha Casa Minha Vida, extremo sul da cidade. Tudo bem. Ainda ajudei com uma das crianças que não queria acordar. Dei um colo até a portaria. Tudo incluído nos 50tåo!

O sol se pondo além dos Morros da Agronomia e eu descendo em direção à casinha. Ao fundo, como quem me consola, Raça Negra mandando o recado aos passageiros que voltam a usar o velho e bom táxi: Hoje é você quem está sofrendo, amor/Hoje sou eu quem não te quer...

terça-feira, 23 de maio de 2023

Se por acaso acontecesse, numa hipótese bem hipotética mesmo, super nada a ver, impensável, coisa da minha cabeça, digamos que eu fosse limpar os tapetes do táxi no fim do dia e encontrasse, numa eventualidade impensável, absurda, imagina, mas acontecesse de eu encontrar entre os bancos do meu táxi uma ARMA (numeração raspada), que alguém, algum passageiro esqueceu/deixou/perdeu/desovou, se acontecesse, veja bem, imaginando isso, tô um pouco nervoso aqui, respirando, respirando, o tambor carregado, duas cápsulas deflagradas, ainda o cheiro de pólvora, se por acaso acontecesse, o que eu deveria fazer? A quem eu deveria (ou não) procurar?
Só uma pergunta.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Porto Alegre subitamente mais leve hoje cedo. Motoristas De aplicativo param em protesto (Uber tremendo de medo). Sem o enxame de carros particulares, cada um transportando uma pessoa, o trânsito areja. Avenidas fluindo, transporte coletivo e táxis voltando a fazerem sentido. Mas isso não foi o mais curioso desta manhã sem Uber. O mais estranho foi ver o cidadão desacostumado com o táxi:

Primeiro desafio: redescobrir os pontos de táxi ao redor da sua casa. Google, até aí tudo bem. Depois descobrir que precisa ligar para um telefone FIXO! Sim. Descobrir que precisa fazer uma ligação de VOZ! Sim. De voz, travar um diálogo com o outro lado da LINHA. Perguntas e respostas, aquela forma antiga de se comunicar AO VIVO, com um interlocutor presencial. Descobrir que o taxista conhece seu endereço sem enviar a localização. Olha! Passado esse primeiro "sufoco", conseguido o transporte, é hora de embarcar.

Primeiro o passageiro entra no táxi digitando no celular e digitando continua. Nem bom dia. Acomoda-se no banco traseiro e espera. O taxista precisa perguntar pra onde ele quer ser transportado. Precisa FALAR com o motorista. Certo. Indicado o destino, finalmente o cliente pode voltar ao seu ambiente seguro: o celular. Mas ele estranha o silêncio, não há uma voz robótica de GPS indicando o caminho. Não HÁ UM GPS?? O taxista conhece o local de destino, conhece a cidade. No lugar da voz do Waze, uma musiquinha no volume mínimo. Marisa Monte. Aos poucos, as diferenças vão chamando o cliente à realidade. A gola do motorista, ele não usa camiseta (regata, nem pensar), camisa com gola, a falta de um boné, a falta de odores desagradáveis, cheiro de GNV vazando, o carro LIMPO! O passageiro passa a mão pelo estofamento: não está manchado. É um carro do ano, se bobear tem até porta-malas. Porta-malas, veja só! O carro flui pela avenida Ipiranga enquanto os demais veículos estão parados. O táxi pode usar a faixa exclusiva para ônibus, o taxista informa. A viagem dá-se na metade do tempo.

Chegando ao destino, o passageiro tenta desembarcar. A porta está travada. Oi? O motorista (taxista, no caso), informa que ele precisa pagar pelo serviço. Mostra, inclusive, o taxímetro sobre o painel do carro. Um taxímetro! E aí vem uma última e agradável surpresa. O cliente percebe que o táxi, quem diria, está mais barato que o aplicativo que ele normalmente usa. Com o protesto dos apps, um terço do preço, pra ser exato. Não há DINÂMICA! O taxista mostra o QR code, manda o pix, beleza! O cliente é só sorrisos.

Mas a alegria dura pouco. Logo o patético protesto dos aplicativos flopa. Dão com os burros n'água, óbvio. E as ruas voltam a inchar, e motoristas voltam a bater cabeça, e a tecnologia reassume o controle, e as big techs da vida cada vez mais ricas, e vamo em frente que atrás não vem ninguém!

entrevista com Cynara Menezes

https://youtu.be/_OsJNm2KAzE

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Passageiro cadeirante, ajudo a embarcar, coloco a cadeira no porta-malas. Hospital de Clínicas. Puxo assunto, pra quebrar o gelo:

— Tenho um amigo que mora nesse seu prédio. O Roberto, um colega escritor.
— Colega seu? Ele é taxista?
— Não, não, sou escritor também, o Roberto, seu vizinho, tem livro publicado e tudo. Escritor.
— Ahh escritor. Roberto... Não sei... Ele trabalha com o quê?

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Eu quase chamei a atenção do homem, que o cravo na lapela do seu paletó estava caindo, mas acabei deixando pra lá. Magérrimo, narigão adunco, meio desajeitado. Mais tarde, quando desembarcou do táxi, notei que havia um outro cravo, vermelho como o da lapela, também a ponto de cair do bolso da calça do meu passageiro. Estranho. 

O homem pediu que eu aguardasse, que não desligasse o taxímetro, iria continuar a corrida, precisava pegar um ônibus para Tramandaí que saia às 11hs. Seria questão de minutos, apenas um abraço fraterno na viúva, apresentar as condolências à família, assinar o livro de presença no velório. Retornaria em seguida. Tudo bem. Bateu a porta e subiu as escadas que davam acesso ao cemitério João XXIII, desajeitado, o cravo despencando do bolso. Enfim.

O homem começou a demorar. O taxímetro batendo, o tempo passando, o ônibus às 11 já era. Comecei a desconfiar. De repente, tudo pareceu meio estranho. Aquele homem cheirando mal, o paletó surrado, o cabelo emplastado... Comecei a achar que tava sofrendo um pênalti. O homem saira pelos fundos do cemitério e eu ali esperando. Já vi esse filme. Cacete! Resolvi conferir o velório.

O defunto parecia ser importante. A capela cheia, gente saindo pelo ladrão. Fui me esgueirando. Licença, licença. Nada do meu passageiro, nem paletó, nem cabelo engomado. Crescia em mim a sensação de que meu cliente picara a mula. O taxímetro, lá fora, batendo. Fui chegando mais pra dentro, a viúva à beira do caixão. Pensei em perguntar pra ela, sei lá, por um homem com nariz adunco, cabelo emplastado... Não tinha um nome sequer, seria ridículo: a mulher ali, sofrendo sua perda e eu enchendo seu saco. Eu já quase desistindo da busca, já aos pés do caixão, quando notei os cravos. Cravos vermelhos! Me aproximei. O caixão coberto por cravos vermelhos, apenas as mãos entrelaçadas, a parte de cima do paletó pra fora. O narigão! Adunco! O cabelo emplastado!!

Fiz o sinal da cruz e larguei fincado! Puta merda! O meu cliente estava morto! Desci as escadas do cemitério voando, as pernas bambas. Minha nossa!

Chegando ao táxi, quem estava parado na porta? Girando a cabeça, procurando por mim? Ele.

— Aí está o senhor! Vamos lá, estou atrasado, o próximo ônibus pra Tramandaí sai às 12 horas. O senhor está bem, taxista? Parece que viu um fantasma.

... Continua
A clínica psiquiátrica diminuiu a medicação, liberou o uso do celular. Posso, enfim, terminar de contar a história. Embarcamos no táxi. Destino rodoviária. Eu ainda impactado com a visão do caixão. O homem sentado às minhas costas, quieto — só o cheiro azedo denunciando sua presença. Meu ritmo cardíaco voltando ao normal, eu criando coragem pra puxar assunto. Na sinaleira da João Pessoa respirei fundo. Resolvi perguntar, afinal, quem era o homem no caixão. Um parente, um irmão gêmeo. Olhei pelo retrovisor, não vi o passageiro. O táxi parado no sinal. Virei-me para encarar o homem atrás de mim, mas já não havia ninguém comigo. O banco traseiro vazio. Apenas dois cravos vermelhos sobre o estofamento

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Por muito tempo acompanhei a angústia de minha passageira tentando engravidar. Tratamentos para ovulação, tabelinhas, fertilização in vitro, promessas, novenas, despachos, umbanda, feitiços... Fez de tudo. O taxista, confidente, levando pra lá e pra cá, torcendo por ela. Até que, aparentemente, desistiu. Não se falou mais em gravidez.

Certo dia, parei em frente à casa dessa passageira e notei algo diferente. Havia uma árvore florida no quintal. Uma pitangueira branquinha de flor. Minha cliente demorando a aparecer, eu já preocupado. Por fim, ela surgiu, pálida. Parecia mal. Acordara enjoada, vomitou o café. Comentei sobre a pitangueira. Ela também havia notado. Espantado-se, na verdade. 
— Essa velha pitangueira nunca deu fruta, hoje amanheceu desse jeito. Vai carregar de pitanga!
— Huumm...

Nove meses depois daquela corrida minha passageira deu à luz uma linda menina a quem chama de flor.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Duas mulheres, digamos, acima do peso, embarcam no táxi. Espaçosas, ocupam todo o banco traseiro. Uma delas, a da direita, está com um saco de bolachas aberto, comendo. A outra, a mais obesa, sentada atrás de mim, com um cabelo maravilhoso, tipo black power enorme achatado contra o teto do táxi. Vila Mato Sampaio. Tudo bem, vamo lá.

As duas eram do tipo "animadas". Falavam pelos cotovelos. O assunto: um certo leite especial, que o filho de uma delas precisa, que está em falta no SUS. A mulher das bolachas (sabe aquelas bolachas água e sal, bem sequinhas?) aos berros, falando mal do SUS, os farelos voando, as migalhas de bolacha ejetadas boca afora. Vixi. Lá pelas tantas, sinto o encosto do meu banco recuando, sendo puxado para trás! Olho pelo retrovisor e a mulher às minhas costas está agarrada ao meu banco, se inclinando pra frente, o rosto quase colado na minha cabeça! Ato contínuo, um cheiro nauseabundo toma conta do táxi. Cacete! 

Um peido!

Não acredito. A mulher meio que ergueu-se segurando no meu banco pra... Peidar! Pensei em meter a boca na gorda, mas o táxi em movimento, abri os vidros e deixei pra lá, o ambiente arejou-se. Deus é pai. A mulher das bolachas agora falando da vizinha que tá grávida, que ela acha que não é do vizinho, tem o cara da moto que visita a vizinha quando o marido sai e tal e coisa quando meu banco novamente é puxado pra trás. Ah não!! Sim. Não acreditei, aconteceu de novo! Aí fui obrigado a esculachar minha "distinta" cliente. Só um pouquinho, minha amiga! A outra, a das bolachas, rindo da peidona hahahah, farelo pra todo o lado... Ninguém merece!

— Desculpa, senhor. Estou com gases.

Subindo pro Mato Sampaio, o clima azedo, a corrida indo pro fim, as mulheres começam a falar de piolhos. A escola das filhas delas com surto de piolhos, as crianças infestadas de piolhos, pente fino no cabelo, larvas de piolhos, piolhos pra cá, piolhos pra lá, piolhos, piolhos, piolhos... Começa a me dar um ruim, a cabeça a coçar, minha meia dúzia de fios de cabelo comichando. Piolhos, piolhos, piolhos, coça, coça, puta que o pariu, o psicológico atuando, as bolachas, os peidos, o vizinho corno, os piolhos... Misericórdia, a corrida parecia não acabar, o Mato Sampaio infinito! 

Chegamos.

As mulheres desembarcaram, a suspensão do táxi voltou à altura original, o estofamento puro farelo água e sal, mas uma lufada de ar fresco nos altos do Mato Sampaio. Respiro fundo, desligo o taxímetro e parto pra próxima. Não há o que fazer.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Os bailinhos de 3° idade tinham parado na pandemia. Voltaram com tudo. Tenho uma passageira frequentadora desses arrasta-pés vespertinos (das 15 às 19). Levei ela há pouco. Sempre rola aquele convite pra entrar com ela, dançar uma ou duas "marcas", tomar um guaraná. Minha desculpa sempre foi o tênis. Não pode tênis nos bailinhos. 

— Sapatênis tá liberado, Mauro. Tá de sapatênis?
— Tênis mesmo, no duro.

Minha cliente é daquelas que não desistem tão fácil. Pediu que eu fechasse o táxi e a acompanhasse até a porta do baile, "pra não chegar sozinha". Bora lá, de braços dados. Era uma cilada. Ela tentou convencer o porteiro a me deixar entrar de tênis! E o pior: o bailinho do Partenon agora tem uma caixa de sapatos na portaria!! Sério! Uma caixa de sapatos! O porteiro perguntou que número eu calçava!

— Bah, Cleuza, lembrei agora, tenho uma corrida marcada pra rodoviária. Putz, não vai dar mesmo...
A mulher entrou pela porta da frente do meu táxi, cabelo esculhambado pelo vento, me deu um beijinho na boca e informou que "nossa" filha já estava esperando na porta lateral do shopping. Só quando levei o dedo ao taxímetro é que ela percebeu que havia se enganado, que aquele não era o carro do seu marido. Deixou o smartphone de lado e olhou pra mim assustada.

- PUTA QUE ME PARIU! desculpa, senhor!
- Imagina. Foi um prazer.

sábado, 22 de abril de 2023

 Hospital Ernesto Dorneles, meu táxi é o único no Ponto. Jesus chega fumando, faz um sinal, diz que já vai entrar, quer apenas terminar seu cigarro. Tranquilo, estou mesmo acabando de digitar uma mensagem no celular. Jesus traga o crivo com prazer, admirando a fumaça que se dispersa no ar. Ele está feliz, não tem como não notar. Jesus ri sozinho.

É incomum um passageiro embarcar no táxi, no banco da frente e apertar a mão do taxista, se apresentar. Jesus Quirino, prazer. Ele me pediu que o levasse até a rodoviária. O sotaque carregado. Venezuelano. Jesus não conseguia conter-se de tão feliz. Segurava uma pasta transparente, com uma papelada dentro, mas o motivo de tanta alegria estava na sua mão. Mostrou-me os dois documentos de identidade. Dele e do filho. Estava saindo do prédio da Polícia Federal, com seus tão desejados documentos da República Federativa do Brasil. Jesus não cabia em si de feliz.
Desde janeiro no Brasil, ele e o filho, trabalhando em um frigorífico na Serra gaúcha (matando porco), Jesus acredita no país, disse que não volta mais para a Venezuela. Disse que morava numa região riquíssima em petróleo, ouro e ferro, mas não tinha como se sustentar, sequer dar de comer ao filho. Jesus se encontrou no Brasil, já ama nosso país.
Dei os parabéns
a Jesus. Desejei que ele e o filho sejam felizes por aqui. Ele agradeceu, apertou minha mão, efusivo como se nos conhecêssemos desde sempre. Um homem com perspectiva de futuro, trabalho, respirando esperança, o documento na mão, o emprego, seus porcos esperando para serem abatidos... Pode não parecer muito, mas era tudo o que precisava aquele Jesus desembarcando do meu táxi. Guardando seus preciosos documentos, tirando mais um cigarro da carteira, sumindo na multidão da rodoviária de Porto Alegre, a felicidade em pessoa. Jesus, enfim, é brasileiro.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

 Palestra na escola Emílio Meyer

 Temos um dependente químico que pega táxi aqui no nosso Ponto. Mora em situação de rua, abaixo da linha da pobreza. Ele vem sempre com o cachorrinho no colo e uma nota de dez na mão. Fui o primeiro a aceitar a corrida – poucas quadras, o dinheiro dá e sobra. Ficou conhecido do Ponto. Apenas um dos colegas não aceita levá-lo. Não aceita por causa do cachorro. Enfim.

Hoje, esse nosso cliente chegou mais alterado que o normal. Gesticulando, falando sozinho, sem o cachorro. Eu era o ponta. Ele avisou que a corrida seria um tanto mais longa, até a Azenha. Perguntou se eu poderia fazer pelos mesmos dez. Bora. Perguntei o que estava rolando.
– Tô devendo na boca. Duzentos conto. Querem a minha cabeça. Pegaram o meu cachorro. Tô indo lá pagar os caras.
Ao longo do caminho, meu passageiro foi tirando dinheiro dos bolsos, da cueca, do boné, sacando notas amarrotadas, dobradas, enroladas. Ele dava uma espichada na cédula, contava, mais cinco, trinta e cinco, e jogava no assoalho do táxi. Mais dez, quarenta e cinco, mais vinte, sessenta e cinco, espicha e joga no chão. Foi aumentado o bolo de notas no tapete do carro até que chegou a 196 Reais. Então, começou a jogar as moedas. E pá! Duzentão! Recolheu tudo de forma um pouco mais organizada, socou no bolso e passou a arrecadar moedas pra pagar a corrida, pois já estávamos chegando. Sete reais em moedas de cinquenta centavos, foi o que sobrou.
– Deixa assim, tá suave. Vai buscar teu cachorro.
Meu cliente agradeceu e se foi, alterado, gesticulando, falando sozinho. Com sorte, há de ficar tudo bem.

domingo, 27 de março de 2022

 Carnaval de 1986. Eu estreando na praça. Meu táxi era uma fusqueta toda baleada. Uma fila enorme de táxis na Avenida Borges de Medeiros esperando o estouro do desfile das escolas de samba, que acontecia ali atrás do Centro Administrativo. Eu finalmente chegando na ponta. Aquela multidão de foliões dispersando, cansados, arrastando suas fantasias, os táxis saindo um a u   m, até que cheguei na ponta. Sou o carro da vez.

Um cara com uma fantasia de romano passa na frente do meu táxi e, ao tentar cruzar a Borges, é atropelado! Um carro o acerta em cheio! O cara gira no ar e se estatela no chão, bem ao meu lado! Correria, gente acudindo, o Romano ferrado, a perna quebrada! Fratura exposta! Caramba! O povo começa a gritar pra colocar no táxi, Pronto Socorro, Pronto Socorro, bota no táxi! Advinha qual táxi? O meu...
Jogaram o Romano no banco traseiro do Fusca (não usávamos o banco dianteiro). A perna em frangalhos, a pele rasgada pelo osso, o sangue pingando, um horror! Acelera! Peguei o pano que eu usava para lavar o táxi e dei para o cara cobrir o ferimento, estancar o sangue, sei lá, era o que a casa tinha para oferecer. E pé na tábua!
Entrei no Pronto Socorro, farol aceso, a mil por hora. Abri a porta do táxi e chamei por ajuda. Apareceu uma baixinha de jaleco branco, uma enfermeira caminhando devagar. Puxei a mulher pela gola, mostrei o Romano, pelo amor de Deus, eu aos berros com a baixinha. Ela na maior calma, acostumada com coisas muito piores. Quando a mulher olhou para o pano podre que eu dei para o cara colocar sobre a ferida, ela enlouqueceu. Começou a me putear, me soltou os cachorros! Como é que eu uso um pano sujo daqueles sobre uma ferida aberta! E bla, bla, bla... porque os micróbios, a infeção, a esterilização... O Romano esquecido dentro do táxi e a baixinha me esculhambando, e eu revidando, batendo boca com aquele um metro e meio de enfermeira. Mó baixaria!
Passados mais de 30 carnavais, eu e a baixinha dos micróbios continuamos batendo boca. Só que, no lugar do Romano, agora é o nosso gato que assiste à discussão.

O mapa no retrovisor

A dor infinita do Quintana de não ter passado por tantas ruas de Porto Alegre, tanta gente que não conhece além do seu bairro, do seu apartamento, a imaginação entre quatro paredes. A cidade é tão diversa, tão cheia de reentrâncias, qual o mapa do poeta. Muito além dos pontos turísticos, o alto dos morros, a zona rural, a orla pra lá de Ipanema, a cidade invisível (que nem em sonhos sonhei), as quebradas da periferia. O táxi tem trânsito livre pela cidade de fato, a cidade real, crua e encantadora. A ideia de fotografar pelo retrovisor é mostrar o que passou, o que o táxi deixa para trás (poeira ou folha levada), enquanto o taxista procura ganhar a vida. A imagem refletida no espelho e além dele, o que está por vir, neste Porto quase sempre Alegre.
Cidade do meu andar
(Deste já tão longo andar)

E talvez de meu repouso

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 Temos uma farmácia ao lado do nosso Ponto de Táxi. Fila o dia inteiro pra fazer teste COVID. Uma loucura. Há pouco, chego no ponto e tem um magrão fazendo uma transmissão, gravando um vídeo, sei lá. Ele segurava o celular na altura do rosto e falava com o aparelho. No exato momento que eu parei ele dizia todo animado:

– Acabo de sair da farmácia. Advinhem: PO-SI-TI-VO!
Assim, todo feliz, sem máscara, sentado no banco do nosso Ponto. Sentado ao lado dele, nem dois metros distante, meu colega Dedão, um senhor dos seus oitenta e tantos anos. Desci do táxi e fui no magrão.
– Caramba, meu! Vaza, vaza e bota essa máscara!
Ele ficou todo afetadinho, ui, ui, segurando o celular, gravando, tem um taxista aqui me hostilizando, não sei o que, eu mandando sair fora, já meio empurrando o magrão, mandando se isolar, mostrando o meu colega idoso ao lado dele. Foi quando ele explicou que era "influenciador digi". Nessa exata sílaba, ele levou o primeiro tapa na orelha: PLAFT!
O magrão virou a câmera do celular, avisou que estava gravando, que era discurso de ódio, intolerância, instafobia, não sei o que mais, eu mandando à merda, chutando as canelas, mandando vazar, o loko gravando, vou postar, no insta, no YouTube, sou influencer, não sei o que, meus seguidores... e toma sopapo no pé do ouvido, vai, vai, vai, meu chapa, cai fora daqui!
O vídeo deve estar bombando nas redes. Procurem por taxista malucão agredindo influenciador. Deve aparecer.
Me mandem o link.
Pensa numa travesti pobre. Paupérrima, nível moradora de rua. Alta, cabelão postiço bem comprido, meio desgrudando da cabeça, todo embaraçado, uma calça legging frouxa, suja, caindo pelas pernas, por baixo uma calcinha de couro preta toda torta, barba de três dias e maquiagem borrada. O quadro da dor. Ela trazia um fardo de cerveja Budweiser embaixo de um braço, uma bolsa a tiracolo e umas sacolas de supermercado penduradas na mão. Caminhava torta, meio de lado, um dos saltos quebrados. Essa foi a figura que chegou na Janela do meu táxi. Queria ir até o colégio Julinho. Não recuso corrida. Bora.
O primeiro empecilho foi a máscara. Ela não tinha. Por sorte, carrego algumas descartáveis. Coloca duas, pra garantir. Perguntou se eu aceitava cartão. Aceito. Liguei a maquininha, ela com um cartão super Gold Master, coisa fina. Queria passar por aproximação. Não rola, a máquina é antiga. Ela tentando igual, esfregando o cartão. Não passa, não adianta. Pedi pra inserir o cartão na máquina. Ela não quis. Não, não, não. Preferiu me pagar em dinheiro. Enfiou a mão na bunda e puxou um calhamaço de notas amarrotadas. Separou 20 pila e me deu. Toca, motora, que hoje eu tô grandona! Partiu.
Logo que saímos ela pediu que eu parasse numa farmácia. Queria comprar uns cremes, maquiagem, lubrificante anal. Sem chance. Sem paradas. Direto no colégio. Foi o combinado. Ai, taxista, para na farmácia, compro umas coisas pra ti, um desodorante, quer um desodorante? Passamos todas as farmácias direto. Era o colégio ou nada. Ela só jogando o cabelo, a guruvinha despregando da cabeça. Disse que já encomendou um cabelo novo, platinado, longo "tipo evangélica", que estava com mais de 400 Reais na bunda, que hoje era tudo com ela.
Já que não aceitei parar nas farmácias, ela me propôs que a levasse para um motel. Tô loko então! Nada de motel, sem parada nenhuma. Já a meio caminho do colégio Julinho ela me propôs encher o tanque do meu táxi, tinha gostado de mim, aceitei fazer a corrida, o que nenhum outro colega estava aceitando. NÃO. Insistiu no motel, queria virar aquelas Buds todas, encher a cara, pra não enlouquecer. E começou a gritar pela janela:
– Eu não quero enlouquecer! Eu não quero enlouquecer, não queeero enlouqueceeeer!
Já chegando no colégio, minha perturbada cliente contou porque só passava o cartão na "aproximação": Não sabia a senha. ROUBADO.
– Já passei no mercadinho, um fardo de Bud, uns bifes, dois maços de cigarro, vou baixar as prateleiras, tô patroa na aproximação, meu bem! Me deixa no Shopping João Pessoa. Vou na Renner comprar um Nike Air. Será que tem Nike Air na Renner, motora? NÃO QUERO ENLOUQUECER! PELO AMOR DE DEUS!!
Aproveitei que ela trocou o destino para o shopping e parei ao lado do ponto de táxi onde haviam três colegas estacionados. Poderiam me ajudar em caso de estresse. Nada. Minha passageira ainda jogou mais uma nota de 5 que estava caindo do soutien. Tava super minha amiga. Pegou o fardo de Bud, as sacolas, os bifes caindo no asfalto. Abaixou-se para juntar, deixando à mostra a calcinha de couro com um feicho enterrado na bunda cabeluda. Senhor, tende piedade. Se equilibrando em apenas um salto, começou a gritar para um morador de rua sentado na calçada oposta, fulano, fulano, nada do outro vir ajudar. Os colegas taxistas me olhando, fazendo sinal, perguntando se estava tudo bem. Tudo bem. Era cedo ainda, nem 8 da manhã de uma sexta-feira que promete ser longa.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Tô com dor de garganta, sintomas gripais. Fui no Postinho. Resultado do exame COVID sai em 3 dias. Fico em casa, por enquanto. Pra aliviar o coração, fiz um teste rápido de antígeno. Não reagente. Deve ser mesmo só a garganta. Mas o que eu quero contar é outra coisa.

No posto de Saúde, esperando minha vez, a atendente chama uma certa "Rosicler". Opa!
Eu tinha meus 14 anos, estudava no colégio Polivalente, em Viamão. Lembro que, no meio do ano, do nada, apareceu uma aluna nova! Rosicler. Olha! Era uma moreninha linda demais, olhos verdes, bem verdes, foi uma sensação, a tal Rosicler. Além de linda, ela usava um abrigo da Adidas. Três listras. Em Viamão, século passado, aquele abrigo era o sonho de consumo de todo estudante! Além do mais, o agasalho não era o tradicional azul (o que já seria o máximo), mas um verde musgo, que ornava perfeitamente com os olhos verdes da Rosicler. Uau! Desnecessário dizer que todos se apaixonaram pela menina, que, óbvio, nos ignorava por completo. Passados mais de 40 anos, como podem ver, não esqueci a Rosicler...
Voltando ao Posto de Saúde. A atendente chama uma certa Rosicler. Fico atento. Será? A mulher que levanta é morena. Ó! Ela não parece a gatinha do colégio. Pudera, passaram-se 4 décadas. Ela parece ter a minha idade. Ó! Pode ser ela! A mulher está obesa, veste uma bermuda legging floriada e chinelos de borracha. Nem sinal do logotipo Adidas. Bom, sei lá, a crise. A mulher move-se com dificuldade, tem um problema em uma perna, eu acho. Ela está à minha frente, vai ao encontro da atendente. Não consigo ver a cor dos olhos: serão verdes? Bem verdes? O cabelo desgrenhado, os braços flácidos gesticulando para a atendente, a voz de taquara rachada. Meu Deus, o que o tempo fez com a Rosicler! O que o tempo fez comigo, que estou no mesmo Postinho, também calçando chinelos de borracha, calvo e com os braços também flácidos. A Rosicler, agora, está discutindo com a atendente, exigindo a presença de um médico, fala de um desgaste no quadril, penso nas minhas dores articulares, aqueles jovens do colégio Polivalente perderam-se no passado. Nada de abrigo Adidas, nada do meu cabelo caindo nos olhos. A Rosicler, ainda de costas para mim, roda a baiana, ameaça chamar a imprensa, a Rádio Gaúcha, sinto-me desconfortável, minha antiga paixão poderia, pelo menos, ter mantido a elegância... É quando ela dá a discussão com a atendente por encerrada e vira-se em minha direção. É quando, por fim, consigo olhar os seus olhos: Castanhos, opacos, nenhum brilho, nem sombra daquele verde estonteante. Não é a "minha" Rosicler!
A mesma atendente, pouco depois, enfia um enorme cotonete nas minhas narinas. Parece aborrecida. Não a culpo: o dia está quente, o Postinho cheio, pessoas desagradáveis como a falsa Rosicler... Haja paciência. Esse ainda será um ano difícil.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

 O homem mais feio do Brasil

A Rede Globo entrou em contato comigo. Primeiro por e-mail, pediram telefone e tal. Pensei, Rede Globo! Uau! Gente! Era a produção do programa Amor & Sexo. Eu pensei, bah, tô arrasando muito! Fernanda Lima, Rio de Janeiro, cachê, tudo pago, carro esperando no aeroporto! Gente, finalmente reconheceram meu talento! Passei telefone, endereço, CPF, data de nascimento, senha do banco, tudo! Pode me ligar, pelamor dedeus!

Do outro lado da linha, a produtora do programa, cheia de dedos, escolhendo as palavras. Eles estavam produzindo um quadro chamado "o homem mais feio do Brasil", quadro que era comum no Programa do Chacrinha, mas que foi, por óbvio, abolido. A ideia era justamente provocar a discussão sobre a ditadura do politicamente correto. Enfim.

Mas por que eu?

Eles precisavam de homens feios. A ideia inicial foi o Fabrício Carpinejar, mas o meu amigo alegou não ter agenda (tá bom). Segundo a produtora, o Fabro teria me indicado, por conta de um texto meu publicado no jornal com o título "a arte de ser feio". Perfeito! Alguém inteligente o suficiente pra escrever uma crônica e burro o suficiente pra pagar esse mico em rede nacional (ela não me disse isso, claro). E lá fui eu pro Rio de Janeiro, andar de carrinho de golfe pelo Projac. Embaixo do braço, uns exemplares do meu livro, que eu ia distribuindo pelas redações dos programas. Tá valendo!

Agora, fiquei sabendo que o Carpinejar será o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Nada mais Justo! Por certo, ele deve ter aceitado. Mas fica a dica, pessoal: caso o Filhote de Cruz Credo, por algum motivo, sei lá, uma diarréia mental espontânea qualquer, resolva não comparecer, já sabem: O FCC (Fabrício Carpinejar Cover) está aqui de bobeira, louco pra posar de escritor

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

 Isso a Globo não mostra

Seu Souza, oitenta e muitos anos, indo fazer a dose de reforço da vacina. Ele me confessa que está preocupado. Diz que teve reações adversas nas doses anteriores, a segunda mais forte, quase precisou baixar o hospital, febre, dor muito forte no corpo. Eu procuro animá-lo, vai ficar tudo bem, seu Souza. Estaciono o táxi em frente ao Postinho do Morro Santana. Observo meu passageiro passar direto pela fila, ele tem prioridade. Aumento o som do rádio, relaxo e espero. Espero. Espero. Eu já estava estranhando a demora do seu Souza em voltar quando percebo uma movimentação estranha na porta do Postinho. Gente se afastando, um falatório, meio que um princípio de tumulto, desço pra conferir o que está rolando.
"Tem alguém morrendo lá dentro!", me informa um homem que estava na fila, fila essa que, agora, se transformou em aglomeração na porta da Unidade Básica de Saúde. Forço a passagem, deve ser o seu Souza! Consigo ver o interior do posto de saúde, lá dentro, médicos enfermeiros, todos em pânico! Um homem, que deve ser o segurança, está ao telefone ligando para a polícia. A polícia! Ele pede que mandem viaturas (no plural), precisam de ajuda, um idoso está tendo uma reação horrorosa!
Eu conheço o homem, o paciente, o passageiro, é o seu Souza! Forço a passagem, eu estou com ele! Uma auxiliar de enfermagem toda escabelada me conduz até a sala onde seu Souza está tendo a "reação". A cena é surreal. Um jovem de jaleco branco, médico, está acuado no canto da pequena sala, outro atrás da maca parece se proteger segurando uma cadeira, eles gritam com o homem que esta no centro do ambiente, deitado no chão, se contorcendo. Consigo identificar o seu Souza. Ou o que sobrou dele! O rosto transformado, ainda se espichando, a cabeça encolhendo, os braços e pernas diminuindo, os membros se atrofiando enquanto, na parte posterior do corpo, onde havia a bunda do seu Souza, cresce uma protuberância, uma excrescência, uma, uma... Cauda! A calça, por fim, cede, o tecido rasga e pode-se ver perfeitamente o rabo surgindo horroroso, ainda gosmento, viscoso, resultando da metamorfose pavorosa, mas já perfeitamente delineado: um rabo de JACARÉ!
O postinho em polvorosa, gente berrando, outros desmaiando, fanático gritando mito, mito, Bolsonaro avisou! Seu Souza estrebuchando no chão, um médico jogando a cadeira sobre o animal que horas antes era meu passageiro, outro batendo com a bengala do seu Souza na cabeça do jacaré, maior tumulto. É quando chega um grupo de homens com macacões laranja, tipo bombeiros, com capacetes de proteção e tubos de oxigênio nas costas. Eles afastam as pessoas com vigor desproporcional, têm pressa, parecem determinados a acabar com a função. Um dos homens joga uma rede sobre o jacaré, enquanto outros dois cobrem o bicho com uma lona preta. Embrulham tudo, ensacam o animal, recolhem e tiram de cena, sob o olhar estupefato da audiência. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Noto em um canto da recepção um homem de terno preto e óculos escuros. Ele está sentado de pernas cruzadas, batendo a tampa de uma caneta Bic no tampo de vidro da mesa. Toc, toc, toc. O homem parece indiferente a toda a confusão. Toc, toc, toc.
Toc, toc, toc. Acordo com seu Souza batendo com a ponta da bengala no vidro do meu táxi. Me recomponho, seco o fio de baba que escorria no canto da boca. Meu passageirinho embarca feliz, visivelmente emocionado. Conta que ganhou um bombom, que a equipe de enfermagem está oferecendo aos idosos da terceira dose. Lembra da sua mulher, que ficou pelo caminho, vítima da Covid. Agradece por tê-lo esperado, me oferece o bombom, que eu aceito enquanto retornamos de volta ao ponto inicial. Um chocolate ajuda a manter o pique, zomba seu Souza, que me pegou cochilando.
Preciso colocar o sono em dia.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021


 

Foi assim. Meu táxi requisitado por um motel. Entrei, os passageiros me esperando na garagem do apartamento. Os semblantes não eram dos melhores. A mulher entre preocupada e sorridente, um mistério no rosto. O homem visivelmente irritado. Vamos lá. Boa tarde, boa tarde, taxista, temos um probleminha. Como eu imaginava. É o certo a fazer quando se tem um probleminha: peça ajuda a um taxista. Nóis dá o jeito.
Ocorre que os dois eram amantes (por óbvio, num motel), e o homem estava em apuros. Depois de se divertirem e tal e coisa, o homem relaxou, estiradão, barrigão pra cima (eu imaginando a cena). Depois de refeito do cansaço, resolveu se levantar pra tomar uma ducha. Acontece que o lençol levantou-se com ele. Grudado na bunda.
Durante a brincadeira lá deles, a mulher, que mascava um chiclete, descartou a goma (para fazer sabe-se lá o que com a boca). O chiclete se perdeu na loucura. Depois de tudo, o homem descansou a nádega cabeluda sobre a borracha grudenta. Imaginem. Arrancado o lençol, restou o chicletão grudado nos pelos da retaguarda. Um horror! Não conseguiram limpar a região. Quanto mais puxavam mais grudava. Para não vestir a calça e grudar também no tecido, que não teria como explicar para a esposa, o homem colocou um panfleto do motel entre o chiclete e a calça. Não tinha como chegar em casa naquela situação. Quem sabe o taxista ajuda?
Casualmente eu tinha visto em algum lugar, não fazia muito tempo, a explicação de como tirar chiclete grudado no sofá. Bom, deveria funcionar pra bunda! O lance era congelar a goma de mascar, até que ela ficasse bem sólida. Daí era só puxar.
Não tinha gelo no motel. Tive que sair com o táxi pra buscar. Encontrei numa loja de conveniência. Lá no posto Ipiranga. Cheguei de volta com um saco de gelo. A solução. O homem pagou mais uma hora, fomos os três pra dentro do quarto: amulher, achando graça, o homem puto da cara e eu com um saco de gelo. Chácomigo!
Bom, aí foi aquele tal de aplicar gelo no local, que além de cabelo, agora tinha resto de propaganda de motel. Imagina. Várias pedras derretidas na bunda até que a coisa se solidificou - a pele já azulada, sem circulação de sangue. Tá feito, decretei. Agora era só uma questão de puxar. Perguntei se a amante queria fazer as honras da casa. Neeem pensar. O homem não tinha coragem. Bom, alguém precisa fazer o trabalho sujo. Eu puxo. Vaaaap!
-- Aaaaaaaaaaiiiiiiiii!!! - O berro ecoou por todos os quartos do motel, rebatendo nos muros, voltando, girando no portão, rodando pelos corredores. Era isso. Estava acabado.
Restou uma marca enorme, vermelha, escalpelada, quase em carne viva. Era só uma questão de manter a bunda longe do olhar da esposa. Um hipoglós, um creme hidratante, sei lá. O tempo cuidaria de apagar a marca do crime.
Você não tem um amigo taxista? Sério? Providencie.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 Transportei agora há pouco uma menina muito corajosa. Uns três aninhos de idade, cabelo ralo e olhos brilhantes. Ela viajou sentada no colo da mãe, agarrada a um unicórnio rosa. Estavam indo para o Hospital da Criança Santo Antônio. Quando a mãe confirmou que ela teria que levar um "pique", a menina disse que estava com medo, mas segurou o choro, a voz embargada, apertou o unicórnio contra o peito. A mulher me explicou que a filha está vencendo uma leucemia, que está lutando bravamente, mas as coletas de sangue são um problema. A pequena Isabela disse que seu unicórnio chama-se "Patas Brilhantes" e que ele também tem medo de pique. Confessei a ela que também tenho, todos tem, que não há problema em sentir medo. E inventei uma história sobre o poder de cura do chifre espiral dos unicórnios, e por um instante ela parece ter esquecido que estava indo para o hospital. Pelo resto da viagem, brincou de espetar a mãe com o pequeno chifre de pelúcia do Patas Brilhantes.

No final da corrida, garanti que ficaria tudo bem com ela, mostrei meu polegar inchado pela artrite e recebi um pique do Patas Brilhantes no dedo. Minhas articulações agradeceram.